Notícia

Adriana Arruda - Publicado em 18-04-2022 17:53
Estudo mostra que legislação exclui pequeno produtor do mercado formal
95% de produtores de alimentos de origem animal atuam na informalidade (Foto: br.freepik.com)
95% de produtores de alimentos de origem animal atuam na informalidade (Foto: br.freepik.com)
Em publicação recente em periódico do grupo Nature, pesquisadores brasileiros mostram como, no País, a legislação referente a alimentos de origem animal atua para exclusão de pequenos produtores do mercado formal, levando a insegurança alimentar, desigualdades estruturais e obstáculos ao desenvolvimento regional. O texto, publicado em Nature Food com o título "Animal-source food legislation as a tool for the exclusion of smallholder farmers in Brazil", tem como autores Naaman Francisco Nogueira Silva, docente do Centro de Ciências da Natureza (CCN) do Campus Lagoa do Sino da UFSCar e, da Universidade Federal de Viçosa (UFV), Davi Augusto Santana de Lelis e Antônio Fernandes de Carvalho.

A partir de compilação de dados, os autores concluem que apenas 5% dos produtores de alimentos de origem animal no Brasil conseguem atender às exigências para atuação no mercado formal de carne, ovos, mel, pescado, leite, e seus derivados. Ou seja, 95% atuam na informalidade, impedidos por barreiras comerciais de ingressar em um mercado dominado por oligopólios industriais.

No País, o sistema regulatório para alimentos de origem animal foi, em grande medida, instituído pela Lei nº 1.283, de 1950. A legislação determina que todos os produtores tenham alvará sanitário para venda, de acordo com seu âmbito de atuação. Assim, para o comércio entre estados brasileiros, ou para outros países, a produção precisa ser fiscalizada por órgão federal; para circulação entre municípios de um mesmo estado, pelo órgão estadual; e, para comércio em uma única cidade, a fiscalização é municipal. 

Segundo os pesquisadores, essa lei proíbe, indiretamente, que um produtor fiscalizado por um órgão municipal comercialize seus produtos em outras cidades, e, de maneira análoga, impede que um produtor fiscalizado por um órgão estadual faça comércio com os demais estados da Nação. Assim, a barreira comercial, tal qual está colocada, serviria apenas aos interesses de grandes empresas.

No artigo, os pesquisadores apontam que, além dessas exigências serem exclusivas para produtos de origem animal - não se aplicando a outros alimentos e bebidas -, a fiscalização nos municípios e estados em geral é inexistente ou inoperante.

"Cerca de 60% dos municípios brasileiros não têm serviço de inspeção municipal e, nos grandes centros, não há pessoal suficiente para atender a demanda. Para poder comercializar em todo o País, é preciso fiscalização federal, algo inviável para pessoas com propriedades em locais muito distantes. Tudo isso dificulta a formalização do pequeno produtor", exemplifica o docente da UFSCar.

Ao permanecerem na informalidade, à margem dos sistemas regulatórios, pequenos produtores trabalham na precariedade, em condições inseguras e sem acesso a direitos trabalhistas. Também ficam sem acesso a empréstimos e compras governamentais. Além disso, não contribuem para o desenvolvimento regional como poderiam, por exemplo, pelo fomento ao turismo rural relacionado à produção artesanal. De outro lado, consumidores não têm a garantia de segurança dos alimentos, que podem apresentar contaminação química ou biológica, fraude ou adulteração, uso incorreto de aditivos ou rotulagem inadequada, dentre outros problemas.

Outro ponto é que o produtor não consegue gerar empregos formais. Também é comum o êxodo rural. "Os filhos, que comumente dariam continuidade ao trabalho, vão para a cidade procurar outras ocupações, pois não veem perspectiva naquela atividade", registra o pesquisador. "Além disso, se não há inspeção, como são feitos os abates em termos de bem-estar animal? Ou quais são impactos ao meio ambiente decorrente do descarte de abatedouros clandestinos?", complementa.

Nos últimos cinco anos, algumas condições melhoraram, mas os problemas permanecem. No artigo, é evidenciado como dois mecanismos recentes criados pelo Governo Federal para amenizar este cenário não equacionam o problema.

Um deles é o Sistema Brasileiro de Inspeção de Produtos de Origem Animal (Sisbi-Poa), em que órgãos de inspeção municipais ou estaduais podem solicitar - voluntariamente - a equivalência de seus serviços aos do órgão federal. Para isso, é necessário comprovar que a inspeção segue exatamente as mesmas regras do Ministério da Agricultura, Pecuária e Abastecimento (Mapa), do sistema federal. No entanto, como a adesão é voluntária, a solução fica fora da governabilidade do produtor.

O outro mecanismo é o Selo Arte. Com ele, produtores que comercializam alimentos considerados artesanais (produzidos por famílias, em pequena escala) e tradicionais (com histórico de produção específico em determinada região, como o queijo da Canastra, por exemplo), se fiscalizados por um serviço oficial de inspeção, podem ser autorizados pelo estado de origem a vender em todo o território nacional.

Apesar dos avanços, na prática, as dificuldades persistem. De cerca de 300 mil pequenos produtores existentes no País, menos de 600 usam um desses dois mecanismos.

Mudança de cenário
No artigo, os autores propõem soluções com base na Constituição Brasileira, uma vez que ela prevê o tratamento diferenciado para pequenos produtores. Assim, destacam a necessidade de estabelecimento de marco regulatório com regras diferenciadas, adaptadas às diferentes realidades.

Para respeitá-la, os docentes propõem a criação de um marco regulatório que revogue a legislação vigente, separando produção industrial de pequena escala e, assim, adaptando os mecanismos de fiscalização de forma a condizer com a realidade de cada um.

Neste sentido, afirmam que a segurança alimentar deve ser garantida por um sistema de inspeção eficiente e, ao mesmo tempo, inclusivo, ou seja, que não impeça a integração de agricultores familiares e outros pequenos produtores ao mercado formal. Além disso, destacam que não há fundamento sanitário para a imposição de barreiras comerciais indiretas por meio da legislação. "Se houve aprovação do município ou do estado, ou seja, se o produto foi considerado seguro para o consumo humano, o alimento também é apto para ser comercializado em outros lugares", detalha o professor da UFSCar.

Assim, a proposta é que pequenos produtores com fiscalização de serviços municipais ou estaduais possam comercializar sua produção em todo o território nacional, e que produtores industriais precisem da aprovação federal para comércio entre estados e para outros países.

Para sanar a questão das limitações dos serviços de inspeção, uma possibilidade é a criação de consórcios entre os municípios. Assim, é possível dividir os custos com pessoal e logística e atender um maior número de produtores de uma determinada região.

"Se não colocarmos o 'dedo na ferida', estas arbitrariedades continuarão trazendo prejuízos para a sociedade brasileira. Perdemos todos nós", lamenta Naaman Nogueira.